ONDE DORMIRÃO OS POBRES?


Texto preparatório ao VII Seminário Nacional de Incidência Política
Por Fr. José Bernardi, OFM Cap. 



Introdução
       Todos acompanhamos a crise institucional que atinge o Brasil no último período: as denúncias de corrupção, o processo que levou a destituição da Presidenta Dilma e a consequente subida ao poder de Michel Temer, as denúncias envolvendo o presidente, a atuação do judiciário, especialmente do STF. Por outro lado, mudanças na Constituição são realizadas às pressas, na calada da noite, sem discussão com a sociedade. Um conjunto de reformas tramita no Congresso Nacional, especialmente aquelas da Previdência e a Trabalhista.
      Esse conjunto de reformas se replica nos estados e municípios, acompanhando a onda nacional, onde se defende o estado mínimo. A avalanche de denúncias no campo da ineficiência e inoperâncias dos serviços estatais, justificam a terceirização dos serviços e a privatização de campos importantes mantidos pelo Estado, cuja responsabilidade deveria ser compartilhada pelos três entes federativos.
     As áreas da saúde e da assistência são as mais afetadas, porque são a tábua de salvação para as classes menos favorecidas no Brasil, em cuja trajetória dos últimos anos se buscou fortalecer a consciência de direitos. Vamos assistindo uma contínua diminuição, sem constrangimento, do investimento nestas áreas. Para ter uma ideia, basta observar o número de leitos hospitalares do SUS que foram fechados nos últimos anos. Ao mesmo tempo, crescem e se expandem os planos de saúde, incentivados por políticos, inclusive propondo os famosos planos de saúde populares. Os clientes destes planos sabem de sua eficiência e eficácia. Quando os atendimentos se complexificam, a alternativa é encaminhar para O SUS ou pagar particular.
       Não tenhamos dúvida que este é o mesmo destino dos atendimentos no campo do HIV e da Aids. Basta observar que o principal medicamento indicado para a PEP já está disponível para ser comprado nas farmácias. Quem garante que em breve todos os medicamentos estarão disponíveis e somente terão acesso ao tratamento aqueles que tiverem possibilidade de pagar?
     Tudo sugere que estão em andamento profundos retrocessos, cujas consequências impactarão a vida dos mais pobres.
      Esta situação fez a coordenação geral da Pastoral da Aids em parceria com a Casa Fonte Colombo propor “Onde dormirão os pobres?” como tema de reflexão para o VII Seminário de Incidência Política.
     A inspiração vem de uma reflexão do teólogo Gustavo Gutierrez, publicada no início dos anos 90, quando o neoliberalismo se instalou nos países da América Latina, exceto no Brasil, que saía do regime militar e cuja mobilização social pelo fim da ditadura militar, por eleições diretas, pela assembleia nacional constituinte livre soberana e exclusiva foi fundamental na elaboração e promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. O impedimento do presidente Fernando Collor de Melo também arrefeceu as forças conservadoras que tentavam inserir as políticas neoliberais no Brasil. Infelizmente, parece que a hora do Brasil chegou, justamente com o mesmo expediente que o havia impedido no início dos anos 90.

A realidade que nos cerca
       Vivemos numa época cada vez mais dominada pela economia liberal ou neoliberal. O mercado irrestrito, chamado a regular-se com suas próprias forças, passa a ser o princípio, quase absoluto, da vida econômica. O célebre e clássico “deixar fazer” do início da economia liberal postula hoje de forma universal – ao menos na teoria – que toda intervenção do poder político, mesmo para atender as necessidades sociais, prejudica o crescimento econômico e redunda em prejuízo geral. Por isso, se se apresentam dificuldades nos rumos econômicos, a única solução é mais mercado.
      Depois de algumas transformações, a onda liberal recuperou seu impulso nos últimos tempos e cresce sem limitações. O elemento de ponta da globalização da economia é o capital financeiro que percorre o mundo, cruzando fronteiras com incrível mobilidade, em busca de novos e maiores lucros. As economias nacionais se desfazem.
    Com suas realizações e violências, seus progressos e crueldades, suas possibilidades e seus esquecimentos, o panorama da economia e do tecido social contemporâneos se modificou nos últimos anos, com vertiginosa rapidez, como não o fizeram durante séculos.
      Isso significa que há um jogo econômico calcado no mercado financeiro, onde se produz riqueza sem que haja produção alguma. É o oscilar das bolsas de valores que determina os destinos da economia global.
      Olhando mais concretamente para o Brasil percebe-se que há um claro movimento que repercute a crise mundial. Enquanto havia o crescimento, as elites não se importavam muito com as migalhas que eram distribuídas aos pobres. O seu quinhão estava garantido.
       Mesmo que o tema da corrupção tenha ocupado o centro do palco nacional, parece óbvio que este não seja o interesse mais imediato dos grandes grupos econômicos. Eles não querem salvar o Estado, nem acabar com a corrupção. Aliás, se há um grupo que sempre se beneficiou do Estado são exatamente os grandes conglomerados econômicos que privatizaram o Estado, colocando-o a seu serviço. Não é sem razão que o interesse das elites em mudar a legislação trabalhista e previdenciária. E, como se afirmou acima, tomam o poder para enfraquecer o Estado naqueles âmbitos que ele beneficia a população (saúde, seguridade social e assistência social) a fim de evitar que o Estado mexa nos seus interesses, cobrando impostos devidos (dívidas imensas), taxe lucros e grandes fortunas.
       Ou seja, o que está em curso no Brasil é um processo de retomada do Estado exclusivamente pelas elites, submissas ao capital internacional, que não suportariam mais as políticas de interesse social que beneficiavam populações historicamente excluídas ou as que poderiam colocar o Brasil em pé de igualdade com outros grandes países em campos estratégicos: petróleo, construção civil e tecnologia atômica.

Onde dormirão os pobres?
     Uma breve passagem do livro do Êxodo pode tornar claro para nós este propósito. Entre as prescrições que Moisés recebe de Javé para serem transmitidas ao seu povo está a de se preocupar com o lugar em que dormirão aqueles que não têm onde abrigar-se (Ex 22,26). O texto nos convida a fazer uma pergunta que ajuda a ver o que está em jogo neste momento: onde vão dormir os pobres no mundo que está por vir e que, de certo modo, já deu seus primeiros passos? O que será dos preferidos de Deus no tempo que vem? É certo que não se trata somente de cama, de abrigo, de lugar para repousar a cabeça. O lugar de “dormir” resume todas as necessidades fundamentais para que a vida seja garantida: habitação, saúde, educação, segurança, trabalho...
        Ilustrativa é a parábola contada por Jesus no evangelho de Lucas. É a história de um rico e de um pobre. A lógica de Jesus e do evangelista subvertem a que estamos acostumados. Ele conhece o nome do pobre, mas ignora quem seja o rico. A lógica atual é inversa. Os pobres são anônimos e parecem destinados a um anonimato ainda maior. Nascem e morrem sem se fazer notar. Peças descartáveis numa história que escapa às suas mãos e os exclui dela. O que se diz de um indivíduo pobre, pode-se dizer de uma nação. As nações pobres jazem ao lado das nações ricas e são ignoradas por estas. A distância entre uma e outras cresce cada vez mais. O mesmo acontece no interior de cada país. A população mundial vai se distribuindo de maneira crescente pelos dois extremos do espectro econômico e social. O último informe do PNUD traz números preocupantes. A conclusão é que o mundo está cada vez mais polarizado e a distância que separa os pobres dos ricos aumenta cada vez mais.
       O trabalho pastoral coloca-se, como se sabe, a serviço da vida cristã e da missão evangelizadora da comunidade eclesial. Ao mesmo tempo constitui-se em serviço à humanidade. Anunciamos e realizamos o Reino levando em conta os grandes problemas humanos, tanto a presença atuante do Reino de Deus no hoje, quanto aquele que há de vir em plenitude; assim como na denúncia de sua ausência e dos atores que dificultam sua instalação no aqui e agora. Como quis o Vaticano II, trata-se de fazer uma profunda comunhão e solidariedade com as alegrias e angústias das pessoas de hoje, com suas dores e realizações. A ação pastoral desvinculada dos grandes desejos e necessidades dos seres humanos concretos, não alcança nenhuma relevância.
      A temática da pobreza e da marginalização nos convida a falar de justiça e a ter presente os deveres do cristão com respeito a isso. Assim é na verdade, e esse enfoque é sem dúvida fecundo. Mas não se deve perder de vista o que faz a opção preferencial pelos pobres ser uma perspectiva tão central. Na base dessa opção está a gratuidade do amor de Deus. É esse o fundamento último da preferência.
       O próprio termo “preferência” recusa toda exclusividade e procura destacar aqueles que devem ser os primeiros – não os únicos – em nossa solidariedade. O grande desafio é manter ao mesmo tempo a universalidade do amor de Deus e a sua predileção pelos últimos da história. Ficar com apenas um desses extremos é mutilar a mensagem evangélica.
      A razão definitiva do compromisso com os pobres e oprimidos não reside na análise social que empregamos, nem na experiência direta da pobreza que porventura tenhamos ou na nossa compaixão humana. Todos esses são motivos válidos que por certo tem um papel significativo em nossa vida e nas nossas solidariedades. Não obstante, à medida que somos cristãos, esse compromisso baseia-se na fé no Deus de Jesus Cristo.
      O pobre deve ser preferido não porque seja necessariamente melhor que outros a partir da perspectiva moral ou religiosa, mas porque Deus é Deus. Toda a Bíblia está marcada pelo amor predileto de Deus pelos fracos e maltratados na história humana. As bem-aventuranças (Mt 5 ou Lc 6) relevam esse amor preferencial pelos pobres, famintos e sofredores. A opção pelos pobres não é uma questão pastoral ou uma perspectiva de reflexão teológica. É, antes de tudo, um caminho espiritual, um itinerário no encontro com Deus e com a gratuidade do seu amor. Quem não alcança esse nível de espiritualidade, o do seguimento de Jesus, não atinge o âmago da vida cristã e não percebe o alcance e a fecundidade desta opção de fé.

Conclusão provisória
      O VII Seminário de Incidência Política se inscreve neste processo de colaboração da igreja no enfrentamento da epidemia da aids no Brasil. Trata-se de uma iniciativa que nasce do compromisso da fé neste momento concreto da história.
      Ele busca responder a situações históricas mutáveis, que desafiam e ao mesmo tempo procura oferecer caminhos novos de atuação para a tarefa evangelizadora da Igreja no contexto da epidemia.
       A compreensão da fé é, por isso, permanente, como esforço de entendimento exigido pelo dom da fé, sendo ao mesmo tempo provisório enquanto resposta a interpelações concretas e a dado momento histórico.
      O importante na reflexão é sabermos de que lado estamos, os interesses de quem defendemos e que passos podemos dar em conjunto com atores sociais que defendem as mesmas bandeiras a fim de garantir que haja vida em abundância para todos.


COMENTE COM O FACEBOOK: